A cachacinha do almoço, do churrasco e de qualquer comemoração é obrigatória lá em casa. Cê pode dar o que quiser de presente pro meu pai, mas o que ele gosta mesmo de ganhar é uma garrafa novinha de cachaça. Sentar com ele ali na porta da casa com nosso copinho de cachaça na mão é ritual sagrado – se for daquela curtida com cambuci que ele traz da casa do tio, melhor ainda.
Só que, nos últimos meses, tenho vivido mais a fundo o mundo da cachaça e da cultura brasileira trabalhando com o Mapa da Cachaça, e foi durante uma reunião de trabalho que anunciei minhas férias ao Felipe Jannuzzi: vinte dias intercontinentais, um rolezinho pela Holanda e Espanha com o simples objetivo de provar o maior número de sabores possíveis, no corpo e na alma. O Felipe, que não perde uma chance de expandir o universo cachaceiro, lançou o desafio logo de cara: quer escrever sobre cachaça nesses países para o Mapa? Eu, que não perco uma oportunidade de degustar o mundo e suas delícias, aceitei tão rápido quanto a proposta foi feita.
E o que encontrei?
Como o objetivo da viagem era saborear tudo que fosse possível, não seria difícil cumprir a missão. Em todas as regiões que fomos, havia pelo menos uma bebida alcoólica importante para a cultura do local – vinhos, cervejas, sidra, sangrias. Na Holanda, o gim foi servido até mesmo como sobremesa, acompanhando o café no fim de um jantar de culinária flemish no sul do país (mas isso é outra história). Mas, dez dias e dezenas de bares se passaram, a parte holandesa da minha viagem acabou e não encontrei uma bendita cachacinha sequer. Talvez minha estratégia não tenha sido tão certeira, os lugares onde fui acabaram sendo locais demais para uma bebida de tão longe.
Finalmente na Espanha, em Madri, encontrei cachaça em uma barraca no Mercado de San Miguel – paraíso de todas as delícias gastronômicas espanholas e internacionais. Numa das esquinas do mercado, umazumeria que vendia tudo com frutas, de sucos a coquetéis alcoólicos – entre eles, nossa estimada caipirinha. Gastei um pouco do meu portunhol improvisado e bati um papo com o Roberto, dono da barraquinha. Muito simpático, ele me contou que o que sai mesmo na barraca é a tal da caipiroska, porque “a vodka não tem gosto”. Segundo ele, a cachaça tem um gosto muito forte para misturar com outras frutas – infelizmente o meu espanhol não foi suficiente para fazê-lo mudar de opinião. Mesmo assim, pedi uma caipirinha – pero la original, Roberto, con cachaça y limón.
A felicidade em ver nosso coquetel oficial sendo oferecido em um dos espaços gastronômicos mais importantes do mundo foi imensa – não deixei que o açúcar de mais e o gelo de menos me abalasse. Só que não pude evitar ficar um tanto quanto chateada ao ver, no rótulo da cachaça usada por ele, produzida em Barcelona, na Espanha, o produto sendo definido como “Brazilian run”. Como disse Renato Figueiredo em um artigo aqui mesmo no Mapa, dizer que a cachaça é o Rum Brasileiro tira “toda a individualidade da bebida nacional, além, é claro, de passar uma informação errada”. Afinal de contas, a cachaça é feita do caldo da cana-de-açúcar, enquanto o rum, do seu melaço, o que as torna bebidas completamente diferentes.
Perguntei para o Roberto por que ele não usava outras cachaças, e a resposta foi a falta de opções no mercado e os preços mais baixos dessa “nova cachaça” que ele encontrou. Achei interessante a sua resposta, pois, conversando com outro estrangeiro profissional da área, gerente de um cassino em Londres, escutei a mesma resposta sobre não encontrar cachaça nos lugares onde passei. Ele me contou que, em Londres, a cachaça, na verdade, andava fazendo sucesso, que inclusive lembrava de um bar brasileiro que servia diversos rótulos da bebida, que provou algumas cachaças de alambique e que adorou. Segundo ele, o bar do cassino onde trabalha só não serve mais opções, além das industriais, pela dificuldade de encontrar marcas com fornecimento mais constante, mais preparadas para o mercado estrangeiro.
E o que eu achei desta minha busca?
Nos últimos anos vimos o mercado de cachaça dar alguns passos importantes na direção da internacionalização do produto. Tivemos desde celebridades inusitadas, como o rapper americano Snoop Dogg lançando um rótulo de cachaça em parceria com um alambique brasileiro, com uma pegada publicitária mais agressiva e estratégica, até grandes aglomerados estrangeiros comprando partes de empresas brasileiras, prevendo a expansão do setor cachaceiro. Na Espanha mesmo tivemos o caso de uma grande empresa familiar que recentemente adquiriu mais da metade da produtora da cachaça Santo Grau e prometeu um grande investimento na expansão deste mercado. E como o próprio herdeiro da empresa, Ignacio Osborne, concluiu, “quando se fala em uma bebida espirituosa, como é a cachaça, é preciso fazer um intenso trabalho de branding para abrir esses mercados que só conhecem a cachaça de baixa qualidade utilizada para misturas. São pelo menos cinco anos de trabalho”.
Como profissional da área de comunicação, concordo com Ignacio. É preciso muito trabalho de construção de marca, não apenas individualmente das empresas, como também em conjunto, do produto cachaça. Foi lindo ver o respeito que os holandeses têm pelo gim, ver um belgas harmonizando comida com cerveja artesanal prato a prato, presenciar a sidra asturiana sendo servida do alto, com o braço por trás da cabeça. E sei que vai ser mais lindo ainda quando, da mesma forma, os turistas já chegarem aqui no Brasil perguntando onde é que podem tomar uma bela cachaça de alambique.
Apesar do “brazilian rum” estampado naquele rótulo, depois de quase um mês do outro lado do oceano, confesso que sentir o aroma do caldo de cana e alcoólico sendo derramado sobre o limão, o açúcar e o gelo foi forte para o meu coraçãozinho deslumbrado. Êta saudade que bateu da terrinha. Já de volta em casa, após uma sessão sábado-caipirinha-feijoada das boas para afastar o jet lag, posso confirmar que sou dessas brasileiras bem otimistas. Foi incrível falar sobre cachaça com espanhóis, holandeses, ingleses e até mesmo um nepalês, com alguma propriedade e conhecimento sobre o assunto, sabendo que eles também sabiam do que falavam. A cachaça é a bebida do Brasil e o mundo está descobrindo isso pouco a pouco. Obrigada, Mapa e Felipe, pelo desafio e oportunidade. Só voltei com mais certeza ainda de que falar de cachaça em qualquer língua é bão demais, sô!
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