sexta-feira, 17 de julho de 2015

GUEST POST: CORTAR PARA ALIVIAR A DOR

Saber que há tantas meninas (uma em cada cinco adolescentes) que se cortam foi uma das coisas surpreendentes que aprendi com o blog. Eu nunca imaginava. Pra entender melhor o que leva essas jovens à auto-flagelação, já publiquei dois posts sobre o tema. Eis o relato da C.

Desde os 12 anos de idade eu criei o hábito de me arranhar, cortar, para aliviar a dor que eu sentia. Engraçado porque você colocou a auto-mutilação como um sintoma do autodesprezo, coisa que sinceramente eu nunca tinha associado com esse hábito. Sim, eu me odiava, com todas as forças, na verdade eu odiava a vida e queria sinceramente morrer. Mas isso foi por causa de um monte de coisas juntas: minha situação familiar, o fato de ter um corpo de moça, mulher e cabeça de criança (me dava nojo o assédio dos homens, fora as situações de abuso nas ruas que vivi -- comentários baixos ditos em alto e bom som, passadas de mão, eu nem entendia tudo isso e nem sabia como reagir).
 Cortar e arranhar meu corpo era uma maneira de aliviar a dor, era uma coisa que realmente resolvia meu desespero, até mais que chorar. Anos depois eu fui conhecer aquela músicafamosa do Legião Urbana (Clarisse), que fala disso. Não pude deixar de me identificar:

"E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada num canto, seus tornozelos sangram...

E a dor é bem menor do que parece
Quando ela se corta ela se esquece
Que é impossível ter da vida
Calma e força..."

Só depois disso eu parei pra pensar em como isso era comum, meninas e mulheres sofrendo, sem ver esperança, sabe? O Renato fala na mesma música da "violência e injustiça que existem contra todas as meninas e mulheres". E não é assim, no mundo todo?
Eu me odiava mas me cortava e arranhava pra que a dor física pudesse me fazer fugir da realidade da dor na alma. Confesso que de vez em quando ainda tenho crises e faço isso, sempre tento fazer isso em lugares que não apareçam as marcas depois. Uma vez, ano passado, dei bobeira (e uma pirada), e fiz isso num lugar onde as cicatrizes ficaram à mostra. Tive que ficar usando blusas de manga comprida pra esconder até melhorar, mas as marcas ficaram. Aí tive que arrumar uma desculpa. Minha sorte foi que um dia um de meus gatos se assustou no meu colo e me arranhou sem querer, então as marcas que ele fez em mim se misturaram com as cicatrizes, aí eu tive uma explicação.
Eu me cortava e arranhava na nuca e nas costas, perto dos ombros (sempre tive cabelos compridos, era mais fácil esconder). Fazia cortes e arranhões na parte de dentro do braço, nas dobras. Usava o que estivesse mais fácil e mais perto -- pontas de tesouras, estiletes... Levei uma faca várias vezes para o meu quarto, mas não tinha coragem de cortar os pulsos, então só a usava pra me arranhar e cortar...
Terminei um longo namoro há algum tempo, foi muito difícil. No dia que ele terminou comigo estava sentindo uma dor insuportável, queria morrer, não via muito sentido na vida. Então eu me cortei com um caco de vidro que estava perto, pra aliviar a dor e a culpa de ter acabado com o que me parecia ser o amor da minha vida.
Muito tempo se passou desde então, há muitas feridas ainda, mas cresci e vejo que a culpa não foi minha, não foi de ninguém. Hoje estou muito feliz em um relacionamento, aprendi um pouco a amar e me relacionar de uma forma madura. Só que a vida não é feita só de relacionamento homem-mulher, né? Estou com a vida toda bagunçada, e vez ou outra bate um desespero. Fico feliz em só ficar nos cortes, porque hoje eu vejo quanta dor eu poderia causar em outras pessoas -- família e amigos -- caso resolvesse ir além. 
Então eu sempre tento pensar nisso e neles, naquela história boba e batida de que somos responsáveis pelo que cativamos. É o amor e a amizade que me ajudam a continuar, sempre. Creio que embora eu tenha tido problemas há algum tempo, nunca deixei que essas pessoas percebessem essa dor que é a minha vida, assim espero que continue. Antes eu não tinha noção da responsabilidade que é fazer parte da vida de alguém.
Hoje não me corto nem me arranho como antes. Como eu disse, são só alguns poucos momentos de real desespero. Sei que não é legal. Quando deixei as cicatrizes aparecerem, fiquei com medo que suspeitassem. Não quero passar por louca, é só um pouco de dor que tem que vir pra fora de vez em quando. E se hoje não é como antes, é porque eu tenho muito mais consciência dos meus problemas que antes. Mas sou humana, não? Pressão na vida é diária, tem horas que os remédios e a terapia não dão conta da ansiedade, do desespero. Espero poder me controlar a cada dia, por mim, por aqueles que me amam.
Entender meu papel no mundo como mulher e cidadã capaz de fazer a diferença me ajuda demais, a cada dia. Uma das responsáveis é você, pelo espaço que você abre em seu blog -- de aprendizado, de respeito à vida e ao planeta.
Obrigada, não só a você, mas a todxs que fazem parte do Escreva Lola Escreva! Vocês conseguem fazer a diferença!

Leia: Alternativas para não se machucar.

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