No último dia 6 de dezembro, a Sede das Cias, situada em um dos cartões
postais do Rio de Janeiro – A Escadaria Selarón – recebeu em única
apresentação a montagem da Cia de Teatro Popular do Camaragibe, sob
direção do pernambucano Emanuel David D’Lúcard, da peça Senhora de
Engenho – entre a Cruz e a Torá, dramaturgia da carioca Miriam Halfim.
O texto é baseado na história real, quase lendária, da
portuguesa Branca Dias e de sua luta para se manter fiel à sua fé judaica,
enfrentando tanto a Santa Inquisição em Portugal, o que lhe rendeu uma
passagem pelo cárcere, quanto o preconceito e a intolerância no Brasil (a
Inquisição só chegou por aqui após a sua morte), na aurora da colonização
(primeira metade do século XVI).
Ao contrário da personagem homônima do Santo Inquérito de
Dias Gomes, que foi condenada pelo Santo Ofício apesar de ser
verdadeiramente cristã e era uma figura extremamente frágil, a Branca de
Miriam Halfim é uma mulher forte e destemida, porém cheia de conflitos:
suas emoções intensas contra o seu senso de justiça; sua fé inabalável na
Torá contra a culpa de ter que aparentar um credo religioso diferente.
Todas essas características foram bem demarcadas pela
atuação segura de Patrícia Assunção no papel da protagonista, mantendo o
mesmo ritmo e energia do início ao fim do espetáculo.
Geraldo Cosmo, que desempenhou o papel de Diogo
Fernandes, marido de Branca, também soube expressar com intensidade –
característica, aliás, presente em todo o elenco principal – os conflitos
afetivos de seu personagem. A cena em que tem uma ríspida discussão com
Briolanja, sua filha ilegítima, é de impressionante força dramática.
Uma das características desta obra é o caráter humano de seus
personagens. Não há vilões, nem heróis. Todos os personagens têm
defeitos, qualidades, emoções, rancores e afetos, os quais determinam suas
ações todo o tempo. Se podemos apontar os violões, seriam duas
instituições jurídicas da época: o catolicismo forçado e a família patriarcal,
essa última, instituição que sobreviveu positivada no Direito Brasileiro até
bem pouco tempo, só vindo a ser formalmente revogada com a
promulgação da Constituição de 1988. Suas marcas, entretanto, são muito
sentidas até os dias atuais em nossa sociedade.
A humanidade dos personagens é ainda mais marcante na pele
de Briolanja e sua mãe, Madalena, interpretadas, respectivamente, por
Francis de Souza e Dul Santos. Todo o ódio que Briolanja despeja sobre sua
irmã Brites e contra Branca Dias, transbordando pelos olhar quase cortante
de Dul, é, na verdade, ódio contra o patriarcado e a odiosa discriminação
por ele consagrada através da dicotomia nas relações de filiação entre
legitimidade e ilegitimidade. Não há como censurar Briolanja por jamais
acalmar seu rancor. Tampouco sua mãe por sua final resignação diante da
quase inexorabilidade do destino das mulheres no Século XVI no assim
chamado mundo civilizado. Francis realiza esse movimento de maneira
bastante sutil e com ótimo sentido de tempo.
Na trama, Bento Teixeira, o poeta, tem uma função difícil:
introduzir um pouco de leveza e uma certa dose de humor nessa história
que versa sobre temas e questões tão duros, fazendo com que o público
possa suportar tanta dor e tensão durante as cerca de duas horas de
duração do espetáculo. Missão esta que foi desempenhada com maestria
pelo ator Pedro Dias. Experiente, carismático e totalmente à vontade em
cena, Pedro fugiu da tentação de seguir o caminho fácil dos clichês e nos
brindou com um Bento Teixeira verdadeiro, poeta, arrancando risos da
plateia em alguns momentos, sem, contudo, deixar de fazer com que o
público o admirasse e com ele se solidarizasse em sua dor de marido traído,
sem forças para enfrentar a situação.
Dentre os personagens principais, deixei Brites por último não
por acaso. É preciso registrar a atuação magistral de Cláudia Alves no papel.
Brites, com suas deficiências física e mental, enfrentando a dor de suas
limitações, o preconceito por parte até de sua própria mãe, Branca, o ódio
vindo de Briolanja, tirando forças sabe lá Deus de onde para vencer a
tristeza e conseguir entregar aos que a cercavam acenos de afeto e de
carinho. Claudia faz tudo isso com uma verdade que penetra no coração da
gente. Quando está em cena a conexão com o público é instantânea, quase
magnética. Uma atuação de gala de uma atriz de altíssimo nível artístico e
técnico.
Além do elenco principal, há um elenco de apoio que atua em
momentos específicos, como inquisitores, convidados do casamento,
índios, etc. A sensação que se teve da plateia era que se tratava de atores
amadores, mas não chegaram a comprometer a qualidade do espetáculo.
O figurino é simples mas funciona muito bem na missão de nos
conduzir ao clima de Brasil do início da colonização.
A direção de Emanuel David D’Lúcard soube conduzir bem os
atores e conseguiu resolver competentemente o problema de adaptar o
espetáculo para o espaço da Sede das Cias. Minha única ressalva em relação
ao seu trabalho foi a maneira estereotipada de apresentar os índios como
selvagens, quase como animais.
Houve alguns problemas com o som, que, principalmente nas
primeiras cenas, estava com volume excessivo, perturbando (embora não
impedindo) a compreensão da fala dos personagens. Depois o problema foi
resolvido.
Essas ressalvas, entretanto, estão longe de comprometer a
qualidade do espetáculo que é daqueles que, sobretudo pela curtíssima
temporada, nos dão a sensação de privilégio por tê-lo assistido.
A nós, cariocas, só resta esperar que essa seja apenas a
primeira de uma longa e perene série de visitas da Cia de Teatro Popular de
Camaragibe à cidade que insistimos, teimosamente, de chamar de
Maravilhosa.
Bravi tutti!
Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2016
Flávio Lauria*
* atuou como radialista entre o final da década de 80 e início da de 90, com
passagens pelas rádios AM MEC, Carioca e Guanabara, onde foi âncora do
programa Rio Notícias.
Bacharel e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro-UERJ.
Autor da obra A regulamentação de visitas e o princípio do melhor interesse
da criança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
Como docente, lecionou em diversos cursos de graduação e pós-graduação
em Direito por diversas instituições, destacando-se UERJ, PUC/RJ,
Universidade de Vila Velha/ES e Universidade Tiradentes/SE.
Entre 2000 e 2006 ocupou os cargos de Subsecretário Adjunto da Secretaria
de Estado de Administração e Reestruturação e da Secretaria de Estado do
Gabinete Civil do Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Procurador do Estado do Rio de Janeiro (aprovado no X Concurso/1995) e
advogado.
Bacharel em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É um dos autores do samba-enredo do G.R.E.S Unidos do Porto da Pedra no
Carnaval de 2001.
Cantor lírico com mais de uma dezena de papéis operísticos debutados do
repertório para a voz de baixo-barítono, com destaque para Figaro e Don
Alfonso de Mozart, Seneca de Monteverdi, Vodnik de Dvorak e Colline de
Puccini, já tendo se apresentado no Brasil, no Canadá e na Inglaterra.
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