terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Crítica de Flávio Lauria ao espetáculo Senhora de Engenho

No último dia 6 de dezembro, a Sede das Cias, situada em um dos cartões postais do Rio de Janeiro – A Escadaria Selarón – recebeu em única apresentação a montagem da Cia de Teatro Popular do Camaragibe, sob direção do pernambucano Emanuel David D’Lúcard, da peça Senhora de Engenho – entre a Cruz e a Torá, dramaturgia da carioca Miriam Halfim. O texto é baseado na história real, quase lendária, da portuguesa Branca Dias e de sua luta para se manter fiel à sua fé judaica, enfrentando tanto a Santa Inquisição em Portugal, o que lhe rendeu uma passagem pelo cárcere, quanto o preconceito e a intolerância no Brasil (a Inquisição só chegou por aqui após a sua morte), na aurora da colonização (primeira metade do século XVI). Ao contrário da personagem homônima do Santo Inquérito de Dias Gomes, que foi condenada pelo Santo Ofício apesar de ser verdadeiramente cristã e era uma figura extremamente frágil, a Branca de Miriam Halfim é uma mulher forte e destemida, porém cheia de conflitos: suas emoções intensas contra o seu senso de justiça; sua fé inabalável na Torá contra a culpa de ter que aparentar um credo religioso diferente. Todas essas características foram bem demarcadas pela atuação segura de Patrícia Assunção no papel da protagonista, mantendo o mesmo ritmo e energia do início ao fim do espetáculo. Geraldo Cosmo, que desempenhou o papel de Diogo Fernandes, marido de Branca, também soube expressar com intensidade – característica, aliás, presente em todo o elenco principal – os conflitos afetivos de seu personagem. A cena em que tem uma ríspida discussão com Briolanja, sua filha ilegítima, é de impressionante força dramática. Uma das características desta obra é o caráter humano de seus personagens. Não há vilões, nem heróis. Todos os personagens têm defeitos, qualidades, emoções, rancores e afetos, os quais determinam suas ações todo o tempo. Se podemos apontar os violões, seriam duas instituições jurídicas da época: o catolicismo forçado e a família patriarcal, essa última, instituição que sobreviveu positivada no Direito Brasileiro até bem pouco tempo, só vindo a ser formalmente revogada com a promulgação da Constituição de 1988. Suas marcas, entretanto, são muito sentidas até os dias atuais em nossa sociedade. A humanidade dos personagens é ainda mais marcante na pele de Briolanja e sua mãe, Madalena, interpretadas, respectivamente, por Francis de Souza e Dul Santos. Todo o ódio que Briolanja despeja sobre sua irmã Brites e contra Branca Dias, transbordando pelos olhar quase cortante de Dul, é, na verdade, ódio contra o patriarcado e a odiosa discriminação por ele consagrada através da dicotomia nas relações de filiação entre legitimidade e ilegitimidade. Não há como censurar Briolanja por jamais acalmar seu rancor. Tampouco sua mãe por sua final resignação diante da quase inexorabilidade do destino das mulheres no Século XVI no assim chamado mundo civilizado. Francis realiza esse movimento de maneira bastante sutil e com ótimo sentido de tempo. Na trama, Bento Teixeira, o poeta, tem uma função difícil: introduzir um pouco de leveza e uma certa dose de humor nessa história que versa sobre temas e questões tão duros, fazendo com que o público possa suportar tanta dor e tensão durante as cerca de duas horas de duração do espetáculo. Missão esta que foi desempenhada com maestria pelo ator Pedro Dias. Experiente, carismático e totalmente à vontade em cena, Pedro fugiu da tentação de seguir o caminho fácil dos clichês e nos brindou com um Bento Teixeira verdadeiro, poeta, arrancando risos da plateia em alguns momentos, sem, contudo, deixar de fazer com que o público o admirasse e com ele se solidarizasse em sua dor de marido traído, sem forças para enfrentar a situação. Dentre os personagens principais, deixei Brites por último não por acaso. É preciso registrar a atuação magistral de Cláudia Alves no papel. Brites, com suas deficiências física e mental, enfrentando a dor de suas limitações, o preconceito por parte até de sua própria mãe, Branca, o ódio vindo de Briolanja, tirando forças sabe lá Deus de onde para vencer a tristeza e conseguir entregar aos que a cercavam acenos de afeto e de carinho. Claudia faz tudo isso com uma verdade que penetra no coração da gente. Quando está em cena a conexão com o público é instantânea, quase magnética. Uma atuação de gala de uma atriz de altíssimo nível artístico e técnico. Além do elenco principal, há um elenco de apoio que atua em momentos específicos, como inquisitores, convidados do casamento, índios, etc. A sensação que se teve da plateia era que se tratava de atores amadores, mas não chegaram a comprometer a qualidade do espetáculo. O figurino é simples mas funciona muito bem na missão de nos conduzir ao clima de Brasil do início da colonização. A direção de Emanuel David D’Lúcard soube conduzir bem os atores e conseguiu resolver competentemente o problema de adaptar o espetáculo para o espaço da Sede das Cias. Minha única ressalva em relação ao seu trabalho foi a maneira estereotipada de apresentar os índios como selvagens, quase como animais. Houve alguns problemas com o som, que, principalmente nas primeiras cenas, estava com volume excessivo, perturbando (embora não impedindo) a compreensão da fala dos personagens. Depois o problema foi resolvido. Essas ressalvas, entretanto, estão longe de comprometer a qualidade do espetáculo que é daqueles que, sobretudo pela curtíssima temporada, nos dão a sensação de privilégio por tê-lo assistido. A nós, cariocas, só resta esperar que essa seja apenas a primeira de uma longa e perene série de visitas da Cia de Teatro Popular de Camaragibe à cidade que insistimos, teimosamente, de chamar de Maravilhosa.
Bravi tutti! Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2016

Flávio Lauria* * atuou como radialista entre o final da década de 80 e início da de 90, com passagens pelas rádios AM MEC, Carioca e Guanabara, onde foi âncora do programa Rio Notícias. Bacharel e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ. Autor da obra A regulamentação de visitas e o princípio do melhor interesse da criança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Como docente, lecionou em diversos cursos de graduação e pós-graduação em Direito por diversas instituições, destacando-se UERJ, PUC/RJ, Universidade de Vila Velha/ES e Universidade Tiradentes/SE. Entre 2000 e 2006 ocupou os cargos de Subsecretário Adjunto da Secretaria de Estado de Administração e Reestruturação e da Secretaria de Estado do Gabinete Civil do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Procurador do Estado do Rio de Janeiro (aprovado no X Concurso/1995) e advogado. Bacharel em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É um dos autores do samba-enredo do G.R.E.S Unidos do Porto da Pedra no Carnaval de 2001. Cantor lírico com mais de uma dezena de papéis operísticos debutados do repertório para a voz de baixo-barítono, com destaque para Figaro e Don Alfonso de Mozart, Seneca de Monteverdi, Vodnik de Dvorak e Colline de Puccini, já tendo se apresentado no Brasil, no Canadá e na Inglaterra.

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