Ele estava mudo. Dividia sua
atenção entre os movimentos de um cão sarnento que estava sentado em sua frente
e um pedaço de pão esquecido no banco próximo ao que estava debaixo. Descalços,
sem camisas, apenas com um calção azul com bolinhas na parte traseira por estar
gasto com o tempo. Olhou com os olhos lacrimejantes para a
velhinha que era a dona do banco onde estava o pão abandonado. Pediu-lhe
estendendo a mão direita veementemente pela ação instintiva da sobrevivência. A
velhinha balançou a cabeça de forma aquiescente, no entanto dividiu o pão em um
gesto nobre dando a maior parte para o cão que segurou no ar o presente jogado.
Devorou vorazmente o pequeno pedaço
de pão por ser a primeira comida que seu estômago vira durante o dia todo.
Tinha saído desde ontem de tarde de sua casa, fugindo de seu padrasto que só
cheirava a álcool, que só falava alto, que só gritava palavrões. Foi após o
time do mesmo ter perdido, e junto com o time o dinheiro da feira em uma aposta
que fizera na praça. Estava furioso. A fim de descontar no primeiro ser mais
frágil que cruzasse o seu caminho. Carlos José da Silva, o Carlinhos estava só
em casa. Sua mãe, que trabalhava confeccionando bolas numa fábrica de brinquedo
no outro lado do bairro em que morava, saia às seis e meia e chegava às oito da
noite, mal tempo tinha para cuidar da criança.
De corpo franzino, aos cinco anos
de idade estava ele caminhando pela cidade do Recife, em pleno Mercado de
Afogados, não estava acostumado com todo aquele movimento. Pois ele morava em
um lugar mais afastado, em uma casa de alvenaria sem reboco, no Ibura, só não
lembrava o nome da rua. Mas era o nome de um político que já havia morrido e
tinha prometido, sem cumprir, calçar aquela rua. Era muito jovem, mas as agruras
da vida já o ensinaram o suficiente para cuidar de si próprio, para correr,
para pegar uma pedra em sua defesa. Foi caminhando, com seus pés ágeis e
pequenos em direção ao centro do mundo, como pensava ser, o centro do Recife.
Todos diziam a ele, que lá era bonito, que lá as pessoas tinham carro, que lá
todos eram felizes. Via muitos carros, gente apressada, ônibus lotado cachimbando
uma fumaça escura que lembrava o fogão de lenha em que sua mãe cozinhava o
feijão quando não tinha dinheiro para comprar gás.
Chegou ao Marco Zero, perto do
porto e dos navios gigantescos, e olhou pela primeira vez para o mar. Não era
bonito como nos filmes da tevê de quatorze polegadas que assistia todos os
dias. Mas o seu cheiro acalmava, os ventos que lhe afagavam os seus cabelos
pretos e lisos lembravam do carinho de sua mãe Dorinha quando o seu padrasto
não estava. Ficou por ali, sentado, durante horas, matutando o seu destino,
sobre o que queria ser quando crescer, sobre os seus brinquedos quase todos
quebrados que sua mãe trazia dos refugos da fábrica. A vida fazia sentido. Era
um exercício de libertação. Algo que lhe faz amadurecer como um fruto. Uma
semente. Uma manga verde, que vai crescendo. Ganhando cor, corpo, textura e
brilho. Até que um dia ela cai. E foi assim que se viu. Deitou-se no banco de
cimento com a cabeça olhando pra água. Viu seus olhos negros misturados com o
reflexo da água. Sorriu e jogou-se eternamente para o mar.
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